Documentário detalha auge no Barcelona até transferência para o Milan, num retrato mais fiel do gênio de personalidade enigmática relatada em família: “Fala menos das suas emocoes, expõe menos o que sente”
Ao lado do irmão Assis, Ronaldinho fica com os olhos marejados, engole seco e passa a língua ao redor da boca algumas vezes. Roberto (nome do irmão mais velho, empresário e protetor) conta de maneira poucas vezes vista como o pai João morreu depois de parada cardíaca na piscina de casa.
Assis, como ficou conhecido no futebol o canhoto que se profissionaliou aos 16 anos no Grêmio, relata que houve duas quedas de energia durante atendimento ao pai no hospital em Porto Alegre. Na segunda, João, um gremista fanático, não resistiu.
– Quem sou eu para julgar os caminhos de Deus?
A frase é de Assis, mas a câmera não sai do rosto do irmão. Foca um Ronaldo angustiado. Com semblante de choro, antes ele respondeu aos documentaristas do “O homem mais feliz do mundo” – atração lançada pela Fifa+ nesta semana – que era muito novo e não entendeu muito bem na época sobre a morte do pai. Era pequeno, não quis ir no enterro.
O craque deu entrevista ao ge nesta semana e contou um pouco mais sobre o filme:
– Quando estou com a bola, o mundo para – divaga Ronaldinho, cenas depois dos irmãos contarem como ele reagiu e mudou de comportamento no colégio e em casa depois da morte do pai.
Filmagens também mostraram Ronaldinho mais aberto a comentar dores da vida e da carreira — Foto: Reprodução
Num retrato pouco visto do gênio que fez parte da torcida do Real Madrid o aplaudir dentro do Santiago Bernabeu, depois do segundo gol, nos 3 a 0 na temporada de 2005, Ronaldinho inicia e termina o documentário contando que tem saudade. Dos estádios cheios, dos amigos que se foram e, claro, do pai – a mãe ainda não havia falecido quando o documentário foi gravado, inclusive com outros depoimentos bem marcantes da dona Miguelina. Ela morreu em fevereiro do ano passado.
Ronaldinho e sua mãe Miguelina de Assis, em 2019, em cerimônia do Atlético-MG, o último grande momento da carreira do craque — Foto: Pedro Souza / Atlético
A irmã de Ronaldinho entende que ele repete de certa forma o jeito de dona Miguelina, que falava “menos de emoções, se expunha menos”.
– Vai estar sorrindo, mas quem conhece vai ver que não está (bem) – refletiu sobre o irmão depois da queda na Copa do Mundo de 2006, marco na carreira brilhante do craque imortalizado com a inicial e a camisa 10 (R10).
Assis despertou cedo para a fama no futebol brasileiro. No filme, conta que a cirurgia no joelho mudou sua carreira e “Ronaldo completou seu sonho”. No primeiro contrato com o Grêmio, o pai pediu uma casa na negociação. Foi lá na piscina, em dia de festa, que seu João sentiu-se mal, teve parada cardíaca e caiu na piscina desacordado sem ninguém perceber.
O irmão de Ronaldinho conta que dali para frente fez o que o pai fazia: cuidar e proteger todos os Assis e, claro, a joia que tinha em casa, o craque e irmão Ronaldo.
Ronaldinho tinha – e tem ainda – idolatria pelo irmão. “Durmo com meu ídolo”, relembrou, ao contar do início do sonho em casa em Porto Alegre. A relação com o Grêmio é conflituosa, pela saída de Ronaldinho para o PSG e na escolha pelo Flamengo no retorno ao futebol brasileiro em 2011. Mas Ronaldinho não deixa de mandar recado, com certa dose de arrependimento.
A família Assis, com João, de faixa do Grêmio, e o pequeno Ronaldo, abraçado a Assis — Foto: Reprodução
– Grêmio sempre foi minha casa, não queria ter saído daquela forma – refletiu.
As imagens de Ronaldinho em muitos momentos são poéticas – ele andando pela praia de Barcelona, as fases da vida passando e voltando como ondas no mar do Rio e na cidade catalã. O documentário aborda a chegada dele ao Barcelona em crise, a forma como os dirigentes apostaram nele e a conexão imediata com a cidade “que nunca dorme”.
– Não tinha como não dar certo – diverte-se Ronaldinho ao recordar a estreia à meia-noite, no empate em 1 a 1 com o Sevilla.
Isto porque a Liga não aceitou adiamento da estreia e Ronaldinho tinha compromisso com a seleção brasileira. A solução foi colocar a partida na madrugada. As festas que no início eram toleradas e até parte do personagem depois se tornam problema, com dirigentes fazendo dobradinha com a imprensa catalã para contar das noitadas, como admitiu uma jornalista que participa do documentário.
A fase final do documentário é curiosa, com Silvio Berlusconi, todo poderoso da Itália, contando que nas ruas em campanha presidencial lhe pediam para acabar com o comunismo e contratar Ronaldinho para o Milan. O que ele fez. Alguns amigos também contam que tentavam aconselhar Ronaldo a se cuidar mais, dormir mais cedo e, dizem, ele respondia: “Não posso perder esse momento”.
Na casa onde viveu e perdeu o pai quando era uma criança, Ronaldinho lembra da infância em silêncio — Foto: Reprodução
O final no Barcelona tem depoimentos marcantes de Messi. Ele confidencia que depois da decisão de sair, num dos últimos treinos, o brasileiro lhe falou: “agora a casa vai ser sua” e lhe entregou a camisa 10. O craque argentino também disse que “achou estranha” a maneira como Ronaldinho saiu, deixando no ar certo desapontamento com os dirigentes.
O documentário termina com visita a casa da infância de Ronaldinho – numa cena emocionante e de silêncio do craque – e depois com os irmãos tomando cerveja na mansão da Barra da Tijuca (zona oeste carioca), tocando pagode, com uma das músicas de autoria do R10: “perdoa, amor, eu sei que errei, quem nunca errou? Errei tentando acertar”. A letra de Ronaldinho Gaúcho, Alex Nunes, Ederson Melao e Fábio Palmito encerra essa história do homem mais feliz do mundo e que escondia um pouco de melancolia enquanto encantava o mundo com a bola no pé e sorriso inconfundível.
Ronaldinho com copo de vidro e cervejinha na mão — Foto: Reprodução
Assis e Ronaldo (ao fundo) na casa do craque no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução
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